domingo, abril 20, 2008

O mito do guerreiro

Tese diz que devoção a São Jorge aumenta em tempo de violência

Por Ana Lucia Azevedo
Fonte : O Globo, Ciência - Página 35 - 19/04/08

Tempo de violência, época de oração.

E oração para São Jorge. A ligação entre a devoção ao santo guerreiro e períodos de especial violência tem atravessado a História e o planeta. E foi o elo entre o aumento da violência no Rio a partir do final dos anos 90 e o que parece ser um momento de sucesso estrondoso do santo na cidade que levou a historiadora Georgina Silva dos Santos, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), a investigar a origem e a permanência de tamanha fé.

— Os santos têm seus momentos e nos últimos dez anos, a popularidade de São Jorge aumentou muito. Acho que existe uma relação com o crescimento da violência urbana. É uma fé que atravessa classes sociais e gênero. Da vítima ao bandido, todos rezam a São Jorge — diz Georgina, cuja tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo, em 2002, foi sobre o santo.

A tese deu origem ao livro “Ofício e sangue — a irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna”, lançado em Portugal, em 2005. Com Santos até no nome, Georgina é estudiosa de história religiosa e ficava intrigada com uma veneração tão imensa acompanhada por uma falta de informação tão grande quanto.

— Eu queria entender o fenômeno religioso.Tinha curiosidade sobre como um santo popular era tão pouco conhecido. Observei que as pessoas não sabiam quase nada — diz a historiadora.

E fenômeno é adequado para qualificar São Jorge, que não possui raízes históricas. Não há qualquer prova de que tenha existido.Não existe rastro ou registro de nascimento, corpo ou morte.

O dia 23 de abril, feriado por aqui, é só uma convenção. Os dias dos santos marcam a data da morte, quando estes rumariam para o céu, ao encontro de Deus. Como São Jorge não nasceu, não pode ter morrido.

A versão sacra do Rei Artur

Mas São Jorge vive na fé e na imaginação porque é guerreiro. É a imagem do guerreiro perfeito que percorreu incólume quase dois mil anos de História da cristandade. Tão forte que cruzou barreiras culturais e foi abraçado pelo sincretismo afro-brasileiro.

— De certa forma, ele é como o Rei Artur.

O mito do guerreiro viril, corajoso, invencível, sem defeitos. E, como este, pode ter sido inspirado por uma pessoa real, que viveu de fato, cujos feitos, com o passar dos séculos, ganharam um vulto maior do que a realidade. Pode mesmo ter havido um soldado romano convertido ao cristianismo, na época em que Roma era pagã, que tenha ficado famoso pela defesa da fé e de gente em dificuldades — explica a historiadora.

Ela observa que o mito do guerreiro ideal, sempre ao lado dos que precisam, é forte ao ponto de seduzir mesmo os não religiosos — visto a profusão de camisetas, colares, quadros e outros badulaques com São Jorge de tema.

— Há uma conjuntura carioca que favorece santos guerreiros. O sentimento de impotência, o medo do cotidiano. São Jorge sempre foi querido no Rio, desde o tempo da Colônia. Ganhou força no Império. Continuou pela República e agora parece mais popular ainda — frisa Georgina.
Com lança, escudo e elmo, São Jorge é extraordinário para a historiadora porque sintetiza vários mitos. Gregos, cristãos, celtas, germânicos, africanos — estão todos lá, numa única figura poderosa.

A imagem que o brasileiro cultua tem inspiração lusitana. Aliás, São Jorge é o santo padroeiro de Portugal. E também da Inglaterra, da Grécia, da Sérvia, do Canadá e até dos cristãos da China. Isso sem falar em numerosas cidades e regiões.

— É um santo de canonização literária.

Sabemos bastante sobre a vida outros santos. Porém, no caso de São Jorge, a história foi construída pela Igreja Católica, ao longo dos séculos. O mito precede o rito. E no caso de São Jorge, a devoção precede o mito — diz Georgina.

Nenhuma data associada ao santo tem comprovação. Sabe-se que o mito se originou nas atuais Síria ou Turquia, em algum momento entre os séculos II e III. De lá, a devoção ao santo se espalhou pela Itália. Mas só chegou ao restante da Europa por volta do século V, acompanhando as rotas de peregrinação.

— O primeiro surto de grande devoção aconteceu na época das Cruzadas. Não espanta. A imagem do santo era perfeita para os cavaleiros que rumavam para o Oriente — explica a historiadora.

Pasicrato assina, em grego, os primeiros relatos sobre o santo. Ele se diz discípulo de Jorge e testemunha de milagres. O Jorge de Pasicrato salvou o boi de um lavrador, ajudou uma viúva a encontrar o filho. Foi preso e torturado. Essa é a história dos século II e III. A versão da Igreja é do fim do século X. Personagens históricos reais foram incluídos na biografia.

— Ele ganhou vida na história através de personagens conhecidos — observa Georgina .Nessa versão, conta-se que São Jorge foi um centurião romano que se converteu ao cristianismo sob o governo do inclemente Diocleciano, imperador romano famoso pela implacável e atroz perseguição aos cristão. Por sete vezes, São Jorge foi preso e torturado — coisas como ser cozido num forno de cal — e por setes vezes, ressuscitou.

— Essa versão tem influência grega. São Jorge é acorrentado, como Prometeu — acrescenta a pesquisadora.

O dragão só entrou na história de São Jorge por volta dos séculos XI e XII. Não pelas mãos da Igreja, mas devido à influência das culturas celta e saxônica, onde o dragão era um símbolo de poder e fertilidade. A devoção se espalhou porque a figura do guerreiro era muito valorizada pela sociedade medieval. Era um símbolo masculino, cavalheiresco.

— A imagem da lança espetando o dragão é quase um ato sexual. Ele é pagão.
Observe que nas igrejas não há dragão. A Igreja, na verdade, demonizou o dragão, o transformou na personificação do mal — diz Georgina.

Um machão, uma princesa e um dragão

A lenda da princesa salva do dragão pelo santo que troca a vida do monstro pela conversão da comunidade da moça ganhou força durante toda a Idade Média. E virou texto pelas mãos de Jacopo de Varazze, o primeiro a falar dela, no século XIII. A imagem com o dragão é a mais popular do santo, imortalizada pela cultura popular de numerosos países e em obras de grandes mestres como Rubens, Rafael e Ucello.

— Essa imagem é muito poderosa. É bem masculina. Um paradigma de virilidade.Daí, ser comum ver machões com São Jorge tatuado no corpo. É um santo de macho — conta a pesquisadora.

Das cruzadas aos tempos do dragão, São Jorge ganhou o mundo.

— E não há qualquer sinal de que vá ficar menos popular — completa Georgina.

Só por aqui o santo é observado na Lua

Moscou, provavelmente, tem mais estátuas de São Jorge matando o dragão do que qualquer outra cidade. Os ingleses costumam por o santo em bandeiras durante jogos de futebol. O Líbano construiu muitas igrejas para ele. Mas só os brasileiros vêem na Lua a imagem de São Jorge, devidamente acompanhado pelo cavalo e o dragão. São Jorge foi parar na Lua porque na Bahia é associado a Oxossi, orixá, por vezes, também ligado ao satélite, explica Georgina Silva dos Santos.

— Ver São Jorge na Lua é uma coisa bem brasileira, com forte influência da cultura africana. Essa tradição começou na Bahia e se espalhou — diz a pesquisadora .

No Rio de Janeiro e em Recife, para o candomblé e a umbanda, São Jorge é Ogum. No entanto, na Bahia Ogum já era associado a outro guerreiro, Santo Antônio.