domingo, setembro 06, 2009

Crença que mata

Crendices e tradições arraigadas ajudam a disseminar HIV em Moçambique e outros países africanos

Roberta Jansen Enviada especial • MAPUTO, Moçambique

Fonte : O Globo -Ciência - Página 37 - 06/08/2009

Loredana, de 17 anos, tem um caderno de capa cor-de-rosa, onde anota letras de músicas. Foi uma das poucas coisas que levou consigo quando fugiu de casa, há três meses, junto com duas irmãs mais novas. As três eram frequentemente estupradas pelo pai, a mando da própria mãe.

— Minha mãe é curandeira e mandava meu pai dormir conosco para ser rica e ter saúde — explica numa voz quase inaudível e os olhos fixos em um ponto qualquer da parede por sobre o ombro do interlocutor.

Ela e as irmãs vivem atualmente no Centro Nhamai (mulher, no dialeto bitonga), na periferia da capital Maputo, que acolhe mulheres vítimas de violência e abuso sexual.

Todos os seus pertences, inclusive o caderno, cabem numa mochila, guardada atrás da cama de ferro que delimita seu único espaço individual no centro.

— Estou muito melhor aqui — conta, as palavras ganhando entonação e, o olhar, um foco específico. — E posso estudar todos os dias. Eu quero ser médica. Ou cantora.

Não se trata de uma história isolada. Os casos de abuso sexual por orientação de curandeiros não são raros em Moçambique e são apontados por especialistas como um dos fatores da acelerada disseminação da Aids na África Subsaariana, que concentra 70% dos casos mundiais da doença. Estatísticas atribuídas ao governo indicam que existem 72 mil curandeiros em todo o país e a epidemia se tornou uma fonte de lucro para os oportunistas.

Não por acaso, o tema é debatido em horário nobre, na novela “Vidas em Jogo”, uma co-produção entre Brasil e Moçambique, estrelada por atores moçambicanos, que aborda a Aids e os aspectos culturais e sociais da epidemia.

— Mostramos os curandeiros charlatães que dizem que podem curar a doença usando lâminas sem assepsia, por exemplo, mas também mostramos que existe o curandeiro mais consciente, que encaminha os pacientes para o posto de saúde — conta Caroline Menezes, sócia da Cinevideo e produtoraexecutiva da novela.

Moçambique é o oitavo país mais afetado do mundo pela infecção, com uma prevalência que chega a 14% entre a população adulta.

A expectativa de vida hoje pouco ultrapassa os 40 anos. Crendices e tradições culturais muito arraigadas forjaram uma epidemia de parâmetros únicos.

— Existe o mito disseminado de que a relação com uma virgem vai livrar o homem do HIV — conta Cecília Tembe, a coordenadora do centro. — E há curandeiros que dizem que, se um homem dormir com sua filha, o tratamento vai correr bem. E ele ainda vai ficar rico.

Dinheiro e saúde são os bens mais preciosos num país em que 70% da população vivem abaixo da linha da pobreza e uma em cada seis pessoas é portadora do HIV.

— Alguns curandeiros dizem que o sangue de um animal pode livrar o homem do vírus, mesmo que ele tenha feito sexo sem camisinha. Mas outros recomendam a relação com a filha virgem — confirma Nacima Figia, coordenadora de Direito da Mulher e da Criança da ONG Actionaid.

E não só.

— Alguns deles garantem que quanto mais nova for a menina, mais fácil o vírus sai do corpo dele e ele fica curado — conta Paula Vera Cruz, coordenadora nacional do Comitê da Mulher e do Jovem. — Há casos de abuso de meninas de dois anos de idade.

A violência sexual contra a mulher, de forma geral, não é rara na África Subsaariana e também pauta a disseminação da doença.

— O abuso da rapariga é comum a vários países da região — atesta Nacima. — E, muitas vezes, começa no seio da família.

É o caso de Palmira, de 17 anos, também abrigada no centro Nhamai, depois de denunciar o próprio pai na delegacia local.

— Meu pai queria dormir comigo porque eu estraguei uma coisa lá em casa — conta. — Ele queria fazer isso sempre quando minha mãe não estava. Eu não quero voltar para casa.

Para além dos atos criminosos, as relações sexuais em Moçambique seguem padrões próprios, ditados pela forte cultura local, que desafiam as políticas tradicionais de prevenção da Aids. Entender as regras do sexo heterossexual é chave para deter a doença, dizem os especialistas.

O maior fator de propagação da epidemia hoje é o que os documentos oficiais chamam de “parcerias múltiplas e concorrentes”.

Embora o regime seja de monogamia, a prática é polígama.

— Um brasileiro, em média, tem mais parceiros sexuais ao longo da vida, mas elas não são concomitantes — explica Lucas Bonanno, coordenador da Agência de Notícias de Resposta à Sida de Moçambique, especializada em divulgar informações sobre a epidemia. — Os moçambicanos têm menos parceiras, mas são relacionamentos longos, estáveis e que acontecem ao mesmo tempo. É comum o sujeito ter várias casas. E não é raro que a mulher tenha vários “amigos” também.

Vários parceiros ao mesmo tempo

Na análise de Mauricio Cysne, coordenador do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids) em Moçambique, a norma cultural e de aceitação tácita é o que define a epidemia em parte da África austral e em Moçambique.

Amina Abacar Mussawe, de 39 anos, fala abertamente sobre o seu companheiro, a mulher (oficial) dele, e como o HIV se alastrou neste relacionamento.

— Ele levou dois anos para fazer o teste.

Ficou muito assustado, os olhos vermelhos.

Eu dei o maior apoio, fiquei ao lado dele todo o tempo. Acho que quando as coisas acontecem, temos que nos adaptar — conta ela. — Agora estou tentando convencê-lo a falar com a mulher para fazer o teste também. Parece que ela está se negando.

Potencialmente, este padrão dissemina mais o vírus do que o brasileiro, por exemplo.

Assim que um homem é infectado, há um período de poucas semanas, quando o HIV se espalha por seu corpo, em que ele transmite muito mais facilmente o vírus. É a chamada janela infecciosa. Depois disso, a carga viral será muito baixa durante, em média, oito anos, e só voltará a aumentar quando os primeiros sintomas da doença surgirem.

Se ele tem várias parceiras fixas, a chance de ter relações com todas elas durante a janela é alta.

— Você não consegue inserir o preservativo nestas relações porque essas pessoas se conhecem há anos, têm relacionamentos estáveis — explica Cysne. — O que sabemos sobre Aids não funciona para esses casos. Precisamos fechar essa janela infecciosa. Mas como? A pobreza disseminada potencializa a questão cultural. É uma prática disseminada o sexo em troca de pequenos presentes, como telefones celulares e roupas de grifes caras. As moças que usam os cobiçados jeans de cintura baixa são chamadas, na gíria de Maputo, de “tchunga baby”, ou seja, elas têm um parceiro mais velho e mais endinheirado, que lhes dá presentes.

— Do ponto de vista da disseminação da doença, tudo isso poderia estar acontecendo sem problemas, se eles usassem o preservativo — constata Lucas. — Mas é uma cultura que acabou unindo o sexo à infecção.

Eles perderam o controle