domingo, maio 20, 2007

Satanismo e a História da Wicca

Por Diane Vera / Tradução e Adaptação por Femmina Seduttrice

Nota: O seguinte artigo não deve ser tomado como conclusão de que Wicca é uma forma de Satanismo. Embora esse artigo enfatize nas similaridades e conecções históricas entre a Wicca e o Satanismo literário do século XIX, há uma abundância de diferenças também, e ainda mais diferenças entre a Wicca e o Satanismo Moderno (Pós LaVey). Wicca é uma religião moderna e eclética que retirou influências de muitas fontes, tanto antigas como modernas. O Satanismo literário é somente uma dessas muitas fontes.

Em seu esforço para se desassociarem do Satanismo, os wiccans têm tendido a distorcer sua própria história. Wicca e Satanismo são de fato categorias religiosas muito distintas, porém há alguns laços históricos entre os dois, como até alguns estudiosos wiccans estão finalmente começando a admitir. (Veja, por exemplo, o livro de Aidan Kelly "Crafting the Art of Magic" págs. 21-22, 25-26, e 176).

Wicca não é "A Antiga Religião", ainda que influenciada por várias religiões antigas. Wicca como nós conhecemos atualmente é derivada da filosofia oculta do século XIX - incluindo a filosofia do Satanismo literário, entre outros - projetada em uma Deusa e um Deus (não cristãos), acrescida de um estilo descristianizado de magia cerimonial da Golden Dawn e folclore britânico sortido, e mais recentemente reformulado por estudiosos neopagãos, influenciado pelo feminismo e a ecologia. De qualquer forma diversas partes da incerta árvore genealógica da Wicca podem ser traçadas ao Satanismo literário do século XIX , algumas formas têm mais em comum com a Wicca atual do que o Satanismo atual.

O principal exemplo de que o Satanismo literário influenciou fortemente a Wicca, especialmente a Wicca feminista, é o livro "La Sorciere" escrito pelo historiador francês do século XIX, Jules Michelet (publicado em inglês pela Citadel Press sob o título "Satanism and Witchcraft"). As idéias de Michelet, como parafraseadas por escritoras feministas como Barbara Ehrenreich e Deirdre English em seu livro "Witches, Midwives, and Nurses: A History of Women Healers (Feminist Press, 1973), atuou como um importante papel no atual movimento pela saúde feminina. (Ao menos Ehrenreich e English foram honestas o suficiente para listar Michelet na sua bibliografia )

Michelet foi, até onde eu sei, a origem literária da atual imagem feminista da bruxa como curandeira.Entre outras coisas, ele teorizou que a caçada as bruxas foi usada pela medicina masculina emergente para matar as componesas que lhe faziam competição.

De acordo com Jeffrey B. Russell em "A History of Wichcraft", a Wicca clássica pré-feminista também retirou indiretamente muitas influências de Michelet. Michelet foi a principal fonte de inspiração para Margaret Murray, Charles G. Leland e Sir James Frazer, que a maioria dos wiccans instruídos reconhecem como influências.(Russell aponta isso, todavia negligencia informar ao leitor que o livro de Michelet é repleto de descrições apaixonadas e simpatizantes de Satã e das bruxas medievais. Russell também propaga o falso mito de que a Wicca não tem nada haver com o Satanismo).

Eu irei deixar para os mais estudados do que eu debaterem o quanto endividados Murray e Leland foram de Michelet. Em todo caso, a mitologia italiana sobre bruxaria que Leland apresentou em "Aradia: Gospel of the Witches" (Originalmente publicado em 1899), uma das maiores fontes da Wicca, contém alguns elementos da bruxaria diabólica - "Diana amou extensamente seu irmão Lúcifer, o deus do Sol e da Lua, o deus da Luz, que estava tão orgulhoso de sua beleza, e por isso foi repelido do Paraíso".

Os Wiccans geralmente argumentam que "Lúcifer" não é o demônio cristão, mas ´´ o deus do Sol e da Lua". (Eu também diferencio Lúcifer de Satã, como fazem muitos ocultistas). Contudo a declaração de que Lúcifer foi "repelido do Paraíso" por seu "orgulho" é claramente uma referência ao mito do demônio cristão. Aradia contém uma mistura de mitologias.

Os wiccans estão corretos em dizer que seu Deus Chifrudo não é Satã, porém não é historicamente verdadeira que a imagem cristianizada de Satã é uma re-interpretação do Deus wiccan. Pelo contrário, o moderno conceito wiccan do Deus Chifrudo é originário de uma re-interpretação paganizada da imagem medieval do demônio cristão (como nos escritos recentes de Margaret Murray).

É verdadeiro que a imagem medieval do demônio cristão, incorpora versões distorcidas de deuses antigos (não só os chifres, ex.: o tridente que foi retirado de Poseidon/Netuno). Porém a imagem wiccan do Deus Chifrudo não é uma continuação direta de alguma religião antiga, e pelo menos um aspecto chave não veio de outra fonte senão do conceito medieval do demônio cristão como manifestado nas caçadas às bruxas.

A idéia de um Deus Chifrudo associado especificamente com a bruxaria é derivada da caçadas as bruxas pelos cristãos, e não de outra fonte prévia. Na religião pré-cristã européia, havia deusas associadas a bruxaria (ex: Hécate), mas Pan e outros deuses com chifres não eram associados a bruxaria, até onde eu sei. Muito da própria imagem wiccan é baseada na re-interpretação paganizada da alegada adoração ao demônio, do que realmente na religião antiga.

Muito da terminologia e da imagem wiccan (ex: as palavras "bruxa/witch", "coven", e "sabbat"), são usadas por causa do falso mito wiccan de que sua religião é sobrevivente de uma religião medieval secreta que foi alvo dos caçadores de bruxas. (negligenciando a origem lingüística desses termos que vieram da caçada às bruxas).

A idéia relatada que os modernos wiccans continuam sob o perigo de serem confundidos com satanistas é, ao menos parcialmente, uma profecia de próprio preenchimento. Poucas pessoas iriam confundir Wicca moderna com Satanismo, se a Wicca não usasse tantos termos derivados da caçada às bruxas e outras pompas popularmente associadas a bruxaria diabólica.

Minha questão aqui não é dizer que os wiccans não devem usar os termos "bruxa/witch", "coven" e "sabbat". A questão é que se eles usam essas e outras pompas da bruxaria diabólica, eles devem aceitar as conseqüências. Por exemplo, quando explicando que Wicca não é Satanismo, deveriam confirmar a real razão para a confusão: que wiccans escolheram se identificar com as vitimas das caçadas às bruxas na Europa medieval e por isso usam sua terminologia. Wiccans certamente não deveriam responsabilizar os satanistas por suas próprias dificuldades de relações públicas, como alguns wiccans fazem.

Wiccans me aborrecem quando na tentativa de se distanciarem do Satanismo, difundem concepções populares errôneas sobre Satanismo (ex: dizendo: "Nós não somos satanistas!" em um tom dando a entender que satanistas são monstros, ou dizendo "Nós não somos satanistas!" como se estivessem dizendo "Nós não sacrificamos bebês." - a última declaração pode ser dita separadamente e é um ponto óbvio de transgressão da "Wiccan Rede" e/ou lei do retorno triplo).

Voltando a história da Wicca. Além de Murray, Leland, e outros escritores de bruxaria, outra principal fonte da Wicca é Aleister Crowley. Muitos wiccans esclarecidos (ex. os Farrars e Doreen Valiente) compreendem que os rituais de Gardner foram altamente baseados em rituais de Crowley, entretanto eles tendem a retrucar "Crowley não era um satanista".

Crowley não era um satanista, porém ele estava definitivamente dentro do simbolismo satânico, assim como estava dentro de zilhões de outras coisas.

Em alguns escritos defensores do Neopaganismo (ex. o livro da "The Church of All Worlds", "Witchcraft, Satanism, and Occult Crime: Who's Who and What's What"), é alegado que Crowley não era satanista nem pagão, mas somente mago cerimonial judaíco-cristão.

O fato é que Crowley era muito eclético, podemos listar magia cerimonial da Golden Dawn, Qabalah, Grimórios medievais, Egito e Grécia antiga e Yoga. Crowley deu ênfase a elementos egípcios, inferiorizou os elementos cristãos, e adicionou muitas outras coisas em sua mistura, incluindo muita imagem satânica (tal como sua invocação de Satã no Liber Samekh, isso sem mencionar sua constante alto-definição de "Besta 666").

Alguns irão insistir que o simbolismo satânico de Crowley era meramente uma brincadeira, porém as atitudes de Crowley se encaixam bem dentro da tradição do Satanismo literário do século XIX. (Na maioria das mais sofisticadas formas de Satanismo, o nome "Satã" é entendido em um sentido irônico). Outros irão explicar que a maior parte do simbolismo satânico de Crowley pode ser re-interpretado em termos pagãos, porém isso também é verdadeiro em muitas formas de Satanismo.

Há também uma possibilidade de que a Wicca tenha pego emprestado idéias de escritos sobre reais satanistas no fim do século XIX e início do século XX. No livro "Crafting the Art of Magic", Aidan Kelly diz que Gerald Gardner retirou conceitos chaves de descrições da bruxaria do povo Ozark, incluindo Satanismo popular, no livro "Ozark Superstition" de Vance Randolph em 1947. Eu irei admitir que as conclusões de Kelly foram desafiadas por outros wiccans esclarecidos historicamente.

Claro, se Gardner fosse influenciado por Randolph, ele provavelmente assumiria que as bruxas satânicas populares eram "realmente" pagãs e que Randolph as representou erroneamente como satanistas. Porém a suposição de Gardner não estaria necessariamente correta. Um bruxa (pela inculta visão popular) seria de longe mais parecida com (1) uma satanista ou (2) uma devota embora cristã heterodoxa, do que alguém que tenha preservado uma antiga religião pagã intacta.

Vários costumes pagãos certamente sobreviveram, porém, isso é bem diferente da sobrevivência intacta de uma religião pagã, pelo qual há muita pouca evidência. (Para uma critica da alegada evidência da sobrevivência pagã, veja o livro "A Razor for a Goat" de Elliot Rose.

Concernente a um possível culto medieval muito diferente do que Murray teorizou, veja o livro "The Night Battles" de Carlo Ginzburg. Concernente a bruxas hereditárias contemporâneas, muitas delas são cristãs, veja o livro "Bluenose Magic" por Helen Creighton. Para a um exemplo de grimório decididamente não pagão que é muito popular entre bruxas européias hoje em dia, veja o livro The Sixth e Seventh Books of Moses", disponível em algumas botânicas).

Algumas formas de Wicca podem ter sido influenciadas por satanistas mais diretamente do que via Murray, Leland, Crowley, Ehrenreich/English, e possivelmente Randolph. Dois exemplos possíveis:

(1) Wiccans historicamente instruídos têm debatido qual papel, se algum, foi exercido no desenvolvimento da Wiccan moderna por um inglês trabalhador rural do século XIX chamado George Pickingill que tinha fama de ser um bruxo.

Aidan Kelly, que não acredita que Pickingill contribuiu em algo para Wicca, descreve Pickingill como "um bruxo popular inconstante e satanista". A afirmação que Pickingill exerceu um papel principal foi originalmente feita por "Lugh" em um jornal chamado "The Wiccan" em 1974. "Lugh", que alegou ser um bruxo hereditário, descreveu Pickingill como "A maior autoridade que já existiu no mundo em Bruxaria, Satanismo e Magia Negra" (citado por Doreen Valiente em "Rebirth of Wichcraft").

(2) Starhawk foi iniciada por Victor Anderson, que outrora pertenceu a um coven cuja forma de bruxaria incluía uma forma de "Satanismo literário" (ou pelo menos uma religião similar ao "Satanismo literário"); ou assim diz Kelly, baseada em uma pesquisa de Valerie Voigt.

Mesmo que Kelly esteja correta ou não sobre Victor Anderson, e mesmo que Pickingill tenha ou não algo haver com a Wicca, não deve ser considerado improvável que algumas tradições de Wicca tenham se originado como formas de Satanismo e então gradualmente foram se afastando do Satanismo. Atualmente, há ocultistas que começaram como satanistas e eventualmente se tornaram Wiccans ou outros tipos de neo-pagãos. Seria muito estranho se o entendimento de Wicca de tais pessoas não fossem de um todo influenciado por suas experiências prévias com o Satanismo.

Formas teístas de Satanismo têm uma tendência natural de gerar novas religiões não satânicas. Se você rejeita a teologia cristã (como todos os satanistas inteligentes fazem), e venera Satã como um entidade ou força (não como somente um símbolo como no Satanismo LaVeyísta), então uma questão inevitavelmente aparecerá: Quem é e o que é "Satã"?

Diferentes formas de Satanismo tem diferentes respostas para essa pergunta. Uma das respostas mais fáceis é re-interpretar Satã como uma entidade pré-cristã, geralmente Seth ou Pan.

Contudo, uma vez que você equipara Satã com uma divindade antiga específica, você estará dando o primeiro passo para sair do Satanismo.Você não estará mais venerando Satã, você estará venerando uma divindade pagã com tonalidades satânicas. E então, uma vez que desenvolveu seu sistema de crença paganizada, as tonalidades satânicas se tornaram eventualmente menos importantes, ou vistas assim.

Esse aparentemente foi o caso com o "Temple of Seth", um ramo saído da "Chuch of Satan" de LaVey. (Setianos discordam de serem chamados de "Satanistas"). Parece que não é de todo improvável que algumas formas de Wicca, com todas essas pompas da Bruxaria Diabólica, tenham uma origem similar. Um grupo de satanistas teístas que equiparam Satã com Pan, com alguns satanistas fazem, provavelmente se envolveriam em uma direção semelhante a Wicca.

Voltando a falar sobre as pompas da Bruxaria Diabólica usada pela Wicca. A própria imagem da Wicca é baseada nos registros das caçadas às bruxas, re-interpretando as alegadas atividades diabólicas que foram acusadas como sendo a adoração a um "deus pagão chifrudo".A Wicca desde modo faz um novo uso da mesma fonte que satanistas têm usado por séculos.

Um pergunta interessante: Por que reconstruir uma "Velha Religião" deste modo, ao invés de buscar registros de religiões realmente antigas?

Outras formas de Neopaganismo (ex. Asatru e neo-Druidismo), que se baseiam mais no que é conhecido sobre reais religiões antigas, são de longe menos prováveis de serem confundidas com Satanismo do que a Wicca. Por que os Wiccans insistem em usar palavras como "bruxa/witch" e "coven" quando poderiam perfeitamente usar outras palavras menos "chamativas"?

Apesar das pompas da Bruxaria Diabólica, ou talvez em parte por causa delas, a Wicca é mais popular do que qualquer outra forma de Neo-Paganismo. Certamente a terminologia "chamativa" da Wicca ajudou a ganhar mais publicidade do que o contrário.

Representantes wiccans reclamam algumas vezes pelo fato de que os jornalistas só os entrevistam no Halloween, porém as outras pequenas facções religiosas não chegam nem perto da liberdade publicitária da Wicca em nenhuma época do ano, nem mesmo no Halloween. E, julgando pelo modo que os Wiccan insistem em repetir "Nós não somos satanistas!" mais freqüente do que eles realmente são acusados de serem satanistas, parece lógico suspeitar que pelo menos alguns estão usando palavras e imagens popularmente associadas ao Satanismo como modo de chamar atenção e/ou porque eles se divertem se sentindo desobedientes.(Eu de fato escutei alguns wiccans dizerem que se a palavra "bruxa/witch" se tornasse muito respeitável, ela perderia algo de seu poder).

Satanistas modernos tem a impressão de que a base de atração da Wicca jaz em uma combinação paradoxal (alguns diriam hipócrita) do uso de conotações satânicas e a negação das mesmas. Deste modo, satanistas tendem a considerar a Wicca como uma distorção do Satanismo.

Eu pessoalmente não considero a Wicca como uma distorção. Na minha opinião, o uso pelos wiccans de pompas derivadas das caçadas às bruxas são tampouco mais nem menos legítimas do que o uso das mesmas por satanistas. E a Wicca, como uma religião, tem muito mais substância para isso do que somente essa semelhança superficial deliberadamente adotada da Bruxaria Diabólica.

Mas eu estou muito irritada com essas intermináveis declarações de que "Wicca não tem nada haver com Satanismo!". Eu não daria importância se os wiccans meramente dissessem que Wicca não é Satanismo (ao menos se fizessem isso sem a repetição desnecessária).

É verdadeiro que Wicca não é Satanismo, mas historicamente não é verdadeiro que a Wicca "não tem nada haver com" Satanismo. Nem é verdadeiro que a Wicca não tem nada em comum com o Satanismo. Algumas formas de Wicca e Neo-Paganismo tem muito em comum com (algumas formas de) Satanismo.

Curiosamente, das muitas formas de Neo-Paganismo baseadas na Wicca, uma das mais "satânicas" (em termos de Satanismo literário do século XIX) é a religião feminista da Deusa, apesar de sua freqüente omissão do "Deus Chifrudo". Veja, por exemplo, alguns dos escritos de Mary Daly.

Quando é para inverter e parodiar o simbolismo cristão, Daly faz melhor do uma Missa Negra escrita antigamente. Daly também recupera e venera quase todas as categorias femininas demonizadas concebíveis, de fúrias até feiticeiras. E não podemos esquecer as muitas feministas que veneram Lilith, um demônio feminino do folclore judaico equivalente ao Satã cristão.

Lilith não chegou ao status de antideus, porém por outro lado seu mito é quase idêntico ao do Satã cristão: banida por seu orgulho, ela se tornou um pavoroso demônio e foi associada aos pecados humanos, principalmente os relacionados ao sexo.

Para ser honesta, devo mencionar que nem todas as feministas adoradoras da Deusa são influenciadas por Mary Daly ou veneram Lilith. Porém a contracultura feminista, por ser uma contracultura, tende geralmente incluir uma dose extra de rebeldia "demoníaca" além do que é encontrado na Wicca clássica (ex. Títulos de revistas como "Sinister Wisdom").

Todos esses paralelos com o Satanismo refletem o tema central essencialmente satânico de algumas formas de religiões feministas da Deusa: auto-liberação de uma ordem "espiritual" imposta pela sociedade - ainda que a religião da Deusa seja completamente não satânica pelos critérios da maioria dos satanistas modernos.

As primeiras escritoras feministas sobre religião tiveram uma atitude muito amigável a respeito de Satanismo do que é comum nos dias de hoje. Até onde eu sei, a primeira escritora feminista que escreveu sobre Bruxaria e religião da Deusa foi a líder do sufrágio feminino Matilda Joslyn Gage. Seu livro "Woman, Church, e State" contém uma descrição entusiástica de uma Missa Negra medieval camponesa, baseada nos relatos de Michelet.

Eu tenho esperança de que os Wiccans e adoradoras da Deusa de hoje irão parar de temer reconhecer que, assim como o cristianismo pegou muito da misteriosa religião grega ainda que seja uma religião muito diferente dos mistérios gregos, a Wicca e a religião da Deusa retirou muita inspiração do Satanismo, sendo entretanto religiões muito diferentes.

A honestidade de Kelly é animadora. Se os satanistas de hoje são algumas vezes rudes com wiccans, bem, como você reagiria com um grupo de indivíduos que saíram de seu caminho para renegar suas próprias raízes, para assim repudiar você?

O que é especialmente irritante é o modo que muitos wiccans declaram a palavra "Bruxaria/Witchcraft" como sendo um nome para sua própria religião, definindo não somente a "Wicca" mas também a "Bruxaria/Witchcraft" como uma religião distinta do Satanismo!

Me perdoem, mas "Bruxaria/Witchcraft" não é uma religião. Há bruxas por todo mundo, em diferentes culturas. Elas todas não pertencem a uma religião única. Uma bruxa pode ser de qualquer religião. Uma de minhas bisavós era uma "bruxa de água" que dizia onde cavar poços. Ela era uma devota cristã. Se uma cristã pode ser bruxa, então uma satanista também pode.

Havia tanto cristãs e satanistas chamando si mesmas de bruxas muito antes de que os wiccans atualmente. (Veja os livros de Randolph e Creighton, por exemplo). Assim eu realmente gostaria que os wiccans parassem de usar a palavra "Bruxaria/Witchcraft" como nome para sua religião específica.

Eu não desejo que os wiccans parem do usar a palavra "Bruxaria/Witchcraft", eu apenas rejeito a idéia de que somente as wiccans (ou pelo menos pagãs) são bruxas verdadeiras, e portanto satanistas não podem ser bruxas.

Encorajo os Wiccans a chamarem sua religião de "Wicca", uma palavra arcaica que eles mesmos ressuscitaram. Outro bom nome seria "Bruxaria neo-Pagã", algo sugerindo que sua religião é um ramo da Bruxaria/Witchcraft, e não a Bruxaria/Witchcraft como um todo. Deste modo, seria correto dizer,"Bruxaria neo-Pagã não é Satanismo", considerando que é errado dizer que "Bruxaria (em geral) não é Satanismo".

Também seria ótimo se os wiccans parassem de fazer pronunciamentos inexatos sobre o que Satanismo é, assim como, "Satanismo é uma forma de Cristianismo" ou "Para ser satanista, você precisa acreditar no Deus cristão".

domingo, maio 13, 2007

Tumba de Herodes


Herodium
(Foto: Reuters)



Uma antiga escadaria usada num cortejo fúnebre real levou um arqueólogo israelense a desvendar um mistério de 2.000 anos, a localização da tumba de Herodes, o Grande, considerado pelos romanos como "Rei dos Judeus".

Ehud Netzer, pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém, disse nesta terça-feira (8) ter encontrado o sarcófago do rei, que governou a Judéia entre cerca de 37 a.C. até sua morte, em 4 d.C. A peça havia sido danificada, provavelmente por judeus que se rebelaram contra Roma entre os anos 66 e 72.

Em entrevista coletiva um dia depois do anúncio da descoberta pela universidade, Netzer disse que os restos do monarca devem ter desaparecido quando os rebeldes invadiram a tumba em Herodium, onde ficava o palácio-fortaleza de Herodes, perto de Jerusalém.

Herodes tem um lugar especial na história bíblica. Ele reconstruiu o templo judaico de Jerusalém, e o Evangelho de Mateus diz que ele ordenou o "Massacre dos Inocentes", a morte de bebês do sexo masculino em Belém, a cidade natal de Jesus, porque temia perder seu trono para um novo "rei dos judeus".

Netzer passou cerca de 30 anos procurando a tumba em Herodium. Herodes, nascido por volta de 74 a.C., havia escolhido ser sepultado na fortaleza do deserto, que ele construiu por volta de 23 a.C. e que era usada como seu palácio de verão. O local, na atual Cisjordânia ocupada, foi encontrado graças à antiga escadaria que leva ao topo de uma colina.


Fonte : G1.com.br

domingo, maio 06, 2007

Um outro Jesus

Os evangelhos apócrifos – textos que foram proibidos pela Igreja e que desapareceram por mais de um milênio – trazem um Jesus diferente daquele que conhecemos

Por Érica Montenegro
Edição 207 / Superinteressante - 12/2004


´´Quem não conheceu a si mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade de todas as coisas.´´

Esta frase acima é atribuída a Jesus Cristo. Mas não adianta ir procurá-la na Bíblia. Ela não está em nenhum lugar dos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos. A citação faz parte de um outro evangelho - o de Tomé. Também não perca seu tempo procurando por esse livro no Novo Testamento. Não há por lá nenhum evangelho com o nome do mais cético dos apóstolos, aquele que queria "ver para crer".

Acontece que o texto existe. E é um documento antigo - segundo alguns pesquisadores, tão antigo quanto os que estão na Bíblia. O Evangelho de Tomé, assim como outras dezenas - ou centenas - de textos semelhantes, foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa era. Ele foi cultuado por muito tempo. Até que, em 325, sob o comando do imperador romano Constantino, a Igreja se reuniu na cidade de Nicéia, na atual Turquia, e definiu que, entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo que existiam, só quatro eram "inspirados" pelo filho de Deus - os "evangelhos canônicos" ("evangelho" vem da palavra grega que significa "boa nova", usada para designar a notícia da chegada de Cristo, e "canônico" é aquele que entrou para o cânone, a lista dos textos escolhidos). Os outros eram "apócrifos" (de legitimidade duvidosa). Estes foram proibidos, seus seguidores passaram a ser considerados hereges e muitos foram excomungados, perseguidos, presos. A maioria dos apócrifos acabou destruída e os textos sumiram, alguns para sempre.

Mas nem todos. O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena, por exemplo, escaparam por pouco da destruição - graças a um egípcio anônimo. Em algum momento do século 4, esse egípcio teve a boa idéia de esconder num jarro de barro cópias manuscritas na língua copta desses textos e de muitos outros ameaçados pela perseguição da Igreja. O jarro ficou 1.600 anos sob a areia do deserto. Acabou resgatado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Só nos últimos anos os textos acabaram de ser traduzidos e chegaram ao conhecimento dos cristãos do mundo.

Assim, por acidente, alguns apócrifos sobreviveram ao tempo. E agora, 2 mil anos depois da morte de Cristo, eles estão fazendo um tremendo sucesso. Inspiram filmes milionários (como Matrix) e best sellers (como O Código Da Vinci). São adotados por seitas cristãs, geram religiões, dão origem a teorias conspiratórias e são cada vez mais lidos por fiéis do mundo, inclusive cristãos tradicionais, que não vêm contradição entre alguns desses textos e a religião que eles seguem. Só no Brasil há pelo menos 30 grupos cujas crenças são baseadas nos apócrifos. Como explicar essa súbita popularidade para textos que estiveram sumidos por mais de um milênio e meio?

Talvez a principal razão seja o fato de que os textos revelam mais sobre Jesus. Os quatro evangelhos canônicos contam uma história fascinante, mas deixam muitas brechas. Os cristãos do mundo têm vontade de saber mais sobre esse homem, ainda que seja através de textos que a Igreja não considera legítimos.

E vários dos apócrifos trazem passagens reveladoras para aqueles que tentam enxergar o homem por trás do Deus. "É um Jesus mais humano, em situações mais próximas da vida de homens e mulheres de hoje", diz o jornalista espanhol Juan Arias, do El País, autor de livros sobre a história do cristianismo. Arias, que cobriu o Vaticano por 14 anos, está terminando um livro em que resume as pesquisas históricas a respeito de Maria. Um dos temas que ele examina é a falta de referência em alguns apócrifos à virgindade da mãe de Jesus. "Que mulher se identifica com outra que foi mãe sem perder a virgindade?", pergunta.

Além disso, vários apócrifos trazem o retrato de um Jesus diferente do que conhecíamos. "As questões de gênero, as relações de poder e até mesmo a espiritualidade estão colocadas em termos mais ecumênicos e holísticos nos apócrifos", diz o frei franciscano Jacir de Freitas Farias, professor do Instituto São Tomás de Aquino, em Belo Horizonte. Frei Jacir promove retiros em que evangelhos apócrifos, meditação e ioga se misturam para proporcionar conforto espiritual aos participantes.

Veja por exemplo aquela citação lá atrás, a que abre a reportagem. O que está escrito ali é que nada é mais importante que a sabedoria, e que o autoconhecimento é o caminho para a sabedoria. Essa idéia - que não é muito diferente daquilo que prega o budismo - está completamente ausente dos evangelhos de Mateus, Marcos, João e Lucas. Qualquer bom cristão sabe que o Novo Testamento oferece um caminho de só duas pistas para a salvação. Primeiro: é preciso ter fé (ela remove montanhas). Segundo: suas ações têm que ser boas (ame o próximo como a si mesmo). Em nenhum lugar há referência a outra rota para o Paraíso. Nem Lucas, nem Marcos, nem Mateus, nem João mencionam a salvação pelo autoconhecimento, ou pela sabedoria.

Se o cristianismo tradicional ignorava a importância do autoconhecimento, a idéia não é nova para nós, ocidentais do século 21. Sigmund Freud, no século 19, trouxe para a ciência a idéia de que há algo para ser descoberto dentro de nós mesmos - no caso, o subconsciente - e que esse algo pode nos trazer conforto e felicidade. Talvez esteja aí - na herança freudiana - uma das explicações para o sucesso dos apócrifos nos tempos atuais.

Há outras. O Evangelho de Tomé e outros apócrifos falam ao coração de um contingente que não pára de crescer nos tempos atuais: os ávidos por espiritualidade, mas desconfiados da religião (é bom lembrar que a maior parte dos católicos brasileiros se diz "não praticante"). "O reino está dentro de vós e também em vosso exterior. Quando conseguirdes conhecer a vós mesmos, sereis conhecidos e compreendereis que sois os filhos do Pai Vivo. Mas, se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza e sereis a pobreza", diz o texto de Tomé.

Muitos apócrifos pregam também códigos de conduta menos rígidos que os do cristianismo tradicional. Numa passagem do Evangelho de Maria Madalena, Cristo diz que "eu não deixei nenhuma ordem senão o que eu lhe ordenei, e eu não lhe dei nenhuma lei, como fez o legislador, para que não seja limitada por ela". Esse trecho parece contrariar a própria autoridade da Igreja. Em Tomé, também aparece um Jesus menos dado a imposições, que diz "não façais aquilo que detestais, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do Céu". Bem diferente das aulas de catecismo, não?

Outra novidade é que vários apócrifos valorizam o papel da mulher. Os evangelhos de Filipe e de Maria Madalena afirmam que Madalena recebia revelações privilegiadas do Salvador. "O Senhor amava Maria mais do que todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes", afirma o de Filipe. Para Karen King, historiadora eclesiástica da Universidade Harvard, Madalena estava tão autorizada a pregar a palavra de Jesus quanto os 12 apóstolos. "Os textos mostram que Maria Madalena entendeu os ensinamentos de Jesus melhor do que ninguém", afirmou, em entrevista à revista National Geographic.

Sem falar que muitos apócrifos deixam em segundo plano uma velha conhecida dos cristãos: a culpa. Você conhece a história dos livros canônicos: eu e você somos pecadores, e Cristo morreu na cruz para nos salvar. Nós pecamos, ele morreu - durma-se com isso na consciência. Já os evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena não contêm uma só linha sobre o julgamento e a condenação de Jesus. Ou seja, a Paixão de Cristo, que hoje consideramos central para a fé cristã, não tinha a menor importância para os seguidores desses textos. Nada de culpa, portanto. Ele traz apenas charadas que convocam seus leitores a reflexões espirituais.

Para resumir: os apócrifos revelam um Jesus mais democrático e menos sexista, mais tolerante e menos autoritário - características que combinam com nossos dias. Eles eliminam a culpa e abrem caminho para uma fé pessoal, algo que faz sucesso nestes tempos individualistas. Sem falar que estão cercados de uma charmosa aura de mistério. "Esta é uma sociedade que desconfia de qualquer instituição, então dizer que eles foram condenados pela Igreja vira um chamariz e tanto", diz o teólogo Pedro Vasconcellos, da PUC de São Paulo. Deu para entender por que eles estão tão na moda?

Mas, afinal, que textos são esses? Dá para dizer que eles são vestígios de cristianismos perdidos. Sim, é isso mesmo: o cristianismo, no começo, não era um só, eram vários. "Nos séculos 2 e 3, havia cristãos que acreditavam em um Deus. Outros insistiam que Ele era dois. Alguns diziam que havia 30. Outros, 365", escreve Bart Ehrman, professor de Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte, no livro Lost Christianities ("Cristianismos Perdidos", sem versão em português).

Os primeiros cristãos viviam em comunidades clandestinas, que se reuniam às escondidas nas periferias das cidades e que tinham pouco contato umas com as outras. Essas comunidades eram lideradas muitas vezes por pessoas que conheceram Cristo ou pelos próprios apóstolos. Como Cristo não deixou nada escrito, coube a essas primeiras lideranças do cristianismo construir a religião.

Não há como saber se o Evangelho de Mateus foi escrito pelo próprio Mateus. "Naquele tempo, como ainda hoje, não faltava quem se candidatasse a pregar em nome de um personagem tão importante", afirma o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Mas é bastante provável que o texto tenha sido construído a partir dos ensinamentos do apóstolo recolhidos por seus seguidores. Da mesma forma, os evangelhos de João, Pedro, Maria Madalena, Tomé e Filipe devem ter sido os textos que guiavam as práticas dos grupos que se reuniram em torno dessas figuras importantes da religião nascente (ou que buscaram inspiração nelas). "Os evangelhos apócrifos, da mesma forma que os canônicos, não devem ser encarados como reproduções exatas das palavras de Jesus Cristo, mas como interpretações da mensagem dele feitas pelas primeiras comunidades cristãs", diz o teólogo Vasconcellos. É claro que essas interpretações nem sempre concordavam umas com as outras. E, portanto, é claro que, naquela aurora do cristianismo, produziram-se diversos textos - muitas vezes contraditórios entre si.

Entre os primeiros grupos cristãos havia, por exemplo, os ebionitas, uma das seitas mais antigas. Eles se consideravam judeus e achavam que Jesus era o Salvador apenas do povo hebreu. Os ebionitas mantinham os rituais judaicos, rezavam voltados para Jerusalém e acreditavam que Cristo tinha sido especial não por ser filho de Deus, mas por ter seguido à perfeição a lei judaica.

No outro extremo, estavam os marcionitas, para quem havia dois deuses. O primeiro deles seria um deus mau - o deus dos judeus, responsável por tudo de ruim no planeta. Jesus seria o segundo, um deus bom, que teria surgido para nos liberar da divindade maligna. Esse cristianismo, que hoje soa bizarro, foi popular no começo do século 2, antes de ser condenado como heresia em 139. Uma das razões para o sucesso é que a tese de dois deuses exclui a culpa cristã. Se um deus mau criou o mundo, é ele o responsável pelos sofrimentos sobre a terra.

Os gnósticos tinham crenças aparentadas às dos marcionistas. Também para eles o mundo foi criado por uma divindade imperfeita e não havia por que nos sentirmos culpados pelos males que existem. A diferença é que os gnósticos acreditavam que o Deus bom influiu na criação. Ele dotou cada um dos seres humanos de uma centelha divina - que nos dava a capacidade de despertar dessa imperfeição e conhecer a verdade. Se conseguirmos acumular conhecimento (gnosis, em grego), nos libertaremos desse mundo mau e estaremos salvos. Cristo, para os gnósticos, seria um enviado desse Deus verdadeiro, cujo objetivo seria nos ensinar a despertar. A escrita e a leitura cumpririam um papel importante nesse processo, e por isso eles deixaram muitos textos (boa parte dos apócrifos são gnósticos). Nota-se uma forte influência da filosofia grega nesse cristianismo.

Há uma boa pitada de gnosticismo naquela frase do Evangelho de Tomé que abre esta reportagem. Mas os tomasinos (seguidores de Tomé) eram uma seita à parte. Eles também acreditavam na salvação pelo conhecimento, mas iam além: pregavam que a busca é completamente individual. Os tomasinos rejeitavam a hierarquia - e, portanto, a Igreja. A salvação está dentro de cada um de nós e podemos atingi-la sem a ajuda de um padre.

E havia, claro, os seguidores de Paulo e os de Pedro, fortes especialmente em Roma, bem no centro do império. Esse grupo, no início, não era maior nem mais representativo que os outros. A proximidade com a burocracia estatal que administrava o Império Romano certamente exerceu influência sobre ele - não é à toa que o cristianismo romano era o mais organizado e hierarquizado de todos.

Cada uma dessas comunidades cristãs seguia um certo conjunto de textos - e rejeitava outros. Mas a maioria considerava legítimos os evangelhos de Marcos, Matias, Lucas e João, que provavelmente são os mais antigos e menos controversos. Em 312, o imperador romano Constantino se converteu ao cristianismo. E foi o cristianismo de Roma que ele escolheu. Constantino administrava um império que era quase "universal", e queria também uma "Igreja universal". Quando, 13 anos depois, sob as ordens do imperador, a Igreja se reuniu para decidir o que era o cristianismo, os bispos de Roma, mais organizados e com o apoio decisivo do imperador, sobressaíram nas discussões. "O credo de Nicéia acabaria por se tornar a doutrina oficial que todos os cristãos deveriam aceitar para participar da Santa Igreja, a Igreja Católica", escreve o teóloga Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, no livro Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé.

Os textos que não davam importância à crucificação de Cristo acabaram proibidos. Afinal, a Igreja romana, que cresceu em meio a violentas perseguições, valorizava muito o martírio - associado ao martírio de Cristo. Os evangelhos dos tomesinos, que pregavam a busca individual pela salvação, também caíram fora. A hierarquizada Igreja de Roma obviamente não simpatizava com essas idéias libertárias. Entre os textos que foram proibidos, vários faziam parte das bibliotecas gnósticas. Para Eusébio de Cesária, que no século 4 escreveu o primeiro livro sobre a história do cristianismo, o gnosticismo estava sendo introduzido pelo demônio, "que odeia o que é Deus, que é inimigo da verdade, hostil à salvação do mundo, voltando todas suas forças contra a Igreja". Acredita-se que os manuscritos de Nag Hammadi sejam tesouros salvos da biblioteca gnóstica do Mosteiro de São Pacômio, que ficava lá perto.

Ninguém sabe ao certo quantos evangelhos foram suprimidos. O que se sabe é que só quatro livros foram considerados "corretos". Apenas neles "o ensinamento das linhas de Deus é proclamado. Não acrescentem nada a eles, não deixem nada se afastar deles", segundo um decreto de um bispo de Alexandria. Daí para a frente, haveria quatro evangelhos. E, pela primeira vez, um só cristianismo.

Voltemos então à pregação gnóstica, expressa em vários dos evangelhos apócrifos. O mundo é mau por natureza, mas cada um de nós traz dentro de si uma centelha e, se atingirmos o conhecimento, iremos despertar. Jesus veio à Terra para nos ensinar o caminho. Agora substitua nessa história o nome de Jesus pelo de Neo. E temos um dos maiores sucessos pop dos últimos anos, a trilogia Matrix.

Matrix fez tanto sucesso porque toca num tema com o qual é difícil não se identificar: a sensação de não pertencer a esse mundo, de se sentir estranho nele, e de que ele é banal demais para nossas altas aspirações espirituais. É claro que seria um absurdo dizer que o sujeito que saiu do cinema empolgado com a saga dos irmãos Wachowski tenha sido tocado pelo mesmo tipo de revelação que os cristãos envolvidos pelas pregações gnósticas no século 2 ou 3. Mas talvez não seja por coincidência que o roteiro, inspirado por textos gnósticos, tenha soado tão transcendental .

Os evangelhos apócrifos, assim como os canônicos, foram escritos por pessoas inquietas, numa época conturbada e difícil, em que as antigas respostas já não davam conta de acalmar os espíritos. É claro que os tempos, hoje, são muito diferentes. Mas, de novo, boa parte da humanidade está inquieta e insatisfeita com as respostas que existem. Tem muita gente em busca de alguma coisa que torne nossa existência mais transcendente, mais valiosa. E esses textos escritos por outros homens, numa busca parecida, podem nos dar uma dica de onde começar a procurar.

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Para saber mais :
  • Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew, Bart D. Ehrman, Oxford University Press, EUA, 2003
  • Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé, Elaine Pagels, Objetiva, Rio de Janeiro, 2003
  • Apócrifos da Bíblia e Pseudo-Epígrafos, Cristão Novo Século, São Paulo, 2004
  • As Origens Apócrifas do Cristianismo, Jacir de Freitas Faria, Paulinas, São Paulo, 2003
  • Jesus, Esse Grande Desconhecido, Juan Arias, Objetiva, Rio de Janeiro, 2002
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